segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Nova história de um ovo apunhalado



"Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando."

O ovo e a galinha-Clarice Lispector



Dentro de uma casca - ele repetia, já fazia cinco dias. Quando abria a boca, agora tão seca, murcha, era pra dizer, dentro de uma casca.

Ele antes era muito expansivo, não sei bem se é a palavra certa, mas é a que achei, e com ela quero dizer que ele buscava, nunca estava parado, até na hora de dormir, praticava o sonho consciente, lúcido. E agora estava encolhido, seus olhos que tomavam mais a cada dia um tom de âmbar, refletiam uma rocha e um grito de guerra armada.

Olha, não vou dizer que eu não me assustava quando tinha coragem de encará-lo e sim, eu corria cada vez que aqueles olhos duros me encurralavam, me esmagavam, corria feito uma criança pra debaixo do cobertor. Não queria compreendê-lo, desejava que ele escondesse aquilo de tudo que se derramava cada vez mais fundo nele.

Foi ontem, que já não ouvi mais o seu fio de voz saindo embargado, que parecia um rouco querendo gritar. Senti um alívio imenso, não nego, e demorei um tanto para abrir a porta de seu quarto, não queria perturbá-lo, talvez tivesse chocado. Mas quando o silêncio passou a sussurrar, caminhei lentamente, abri a porta e o vi ali envolto de cacos, tão bonito, limpo, os olhos de vidro, parados e quebradiços. Havia tocado a casca.

Enfim eu poderia voltar a comer ovos.